terça-feira, 3 de outubro de 2017

[Conto] Código marcado

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Salve!

Conto feito pra oficina mensal do E.L.F.A., com o mínimo de 1.000 palavras e o tema "Alguém morreu... quem matou?"


Ambientei o conto no universo da Guerra dos Muitos Mundos (antologia da qual participei e organizada pela querida Rita Maria Félix, que reúne contos passados em várias realidades, unidas por uma guerra inter-dimensional).

O conto mostra o mundo de um dos personagens do conto "A origem da resistência de Kendack", ainda antes da guerra, onde a feroz Gabriele Wang tenta solucionar o assassinato de sua amiga.


Espero que gostem o/


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Código marcado
(do universo da Guerra dos Muitos Mundos)


Roma, ano de 2135.

Gabriele Wang teclou enter – e onze cyber-realidades queimaram. Seus usuários ficariam em coma por isso, mas ela não se importava – quem surfa naqueles domínios da deepweb merecia coisa pior.

– ...onde você tá, figlio di troia? – sussurrou ela.

– Gab? – ecoou a voz do irmão nas conchas dos ouvidos.

Ela xingou; tinha esquecido o canal aberto. Devia estar cansada.

– Nada não, Marco – respondeu.

– Você tá caçando há três noites sem dormir, cê deve tá com mais chá hóng que sangue nas veias – disse ele.

Gabriele pousou o copo com o chá estimulante na mesa. A droga daria uma ressaca fodida, mas não estava a fim de parar agora. Marco se preocupava demais.

– Conseguiu alguma coisa?

– Nada ainda – suspirou a hacker – Pro desgraçado ter passado nossos firewalls e ter fritado a Ming enquanto ela dormia, ele tem que ser bom. Enquanto ela dormia! Que merda de programa é esse? Cazzo, a Ming era foda, tinha que se meter com o Governo sozinha? – e esmurrou a mesa.

Marco suspirou. A irmã sempre ficava nervosa quando estava triste.

– Só... toma cuidado – disse ele – O Governo tá na nossa cola, e eles tem programas tensos, como esse vírus que invade teu sono e pode te matar.

– Fica tranquilo, fratello, não vou ferrar com nosso grupo – respondeu ela.

– Tô preocupado é contigo. Cê é a melhor hacker do AnarchItalia, mas também tem limites. Descansa.

– Sim, claro – disse ela, e desligou o canal.

Crispou os dentes. O desgraçado podia ter quebrado os firewalls, mas as defesas marcaram sua cyber-consciência, fazendo-o deixar pistas pelos domínios por onde passava. Queria continuar enquanto o rastro estava fresco.

Tomou outro gole de chá hóng.

– Seus batimentos cardíacos estão acelerados – soou a voz do seu computador.

– Longma, eu tô bem. Mais algumas noites até achar o figlio di troia, e depois durmo um mês inteiro.

– Mas minha programação diz...

– Eu sei, eu que escrevi teu código – respondeu Wang – Mas cê sabe que cê pode quebrar protocolos, eu te fiz com essa brecha. Então, por favor, ignora a rotina de "preocupação com a dona" e me ajuda a caçar.

E então janelas pipocarem na tela, outros domínios da deepweb. Gabriele vasculhou as imagens em segundos, abrindo e fechando janelas com o movimento dos olhos. Achou o rastro e voltou a digitar.

– ...Gabriele, você não parou desde a morte de Ming – continuou seu computador – Descanse.

Wang suspirou.

– Longma, o que cávolo você quer? Cê tá insistindo pra eu descansar desde ontem, teu código de preocupação não era tão teimoso assim.

Sua tela piscou, ofendido.

– Às vezes a preocupação é genuína, não só fruto de códigos – respondeu ele.

Wang crispou os dentes, mas não discutiu. Voltou ao trabalho.

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– Gab, ainda caçando? – soou a voz de Marco.

Mais uma noite sem dormir.

Buongiorno, Marco.

Cazzo, sorella, tive um sonho fodido com você cometendo um erro estúpido e sendo pega! Larga isso e descansa!

– Eu tô bem – disse ela.

– Não, não tá. Eu tô falando sério, se não parar agora eu te arrasto à força pra fora da cyber-realidade.

– É sério, Marco, eu tô... Mas o que cazzo cê tá fazendo?

Algumas janelas fecharam na cara dela, e seus acessos estavam sendo bloqueados.

– Não ouse! – gritou ela, digitando.

Em segundos, a cyber-consciência de Marco ficou presa na rede da irmã. Ele era bom, mas ela era muito melhor.

– Nunca mais faça isso! – gritou ela.

Cazzo, sorella! – berrou a voz dele, preso no computador – Eu tô tentando te proteger!

– Não, não tá! – disse ela, furiosa, encarando os códigos de sua cyber-consciência na tela – Cê é preocupado, mas nunca fez isso antes. O que cávolo você acha que...

Mas então, seus olhos treinados captaram algo entre os números do código do irmão.

Um rastro.

Cazzo, cazzo! – sussurrou ela entre os dentes, enquanto digitava rápido. A cyber-consciência de Marco congelou, e os códigos de Longma surgiram na tela ao seu lado.

– Gab, o que cê tá fazendo?! – perguntou o irmão, sentindo a mente apertar.

Quando confirmou o que temia, Wang arregalou os olhos sino-italianos. Tomou ar, entre surpresa, triste e furiosa. Digitou mais comandos.

– Gab... – disse o irmão.

Fratello, tchau – e Marco desapareceu da tela.

Silêncio.

– Gabriele, o que você fez com ele?... – disse Longma, mas então ele sentiu sua própria cyber-consciência enrijecer.

Wang tirou as conchas dos ouvidos, os óculos e tudo o que a conectava à cyber-realidade, e encarou a tela.

– Gab, eu não consigo me mover – disse o computador.

– Eu revoguei seus acessos depois de mandar Marco pra casa – respondeu ela, com olhos furiosos – Comece a falar, Longma.

– O que você...

– A código de Marco estava marcado com o rastro de nosso firewall. Ele disse que teve um sonho enquanto dormia, e logo depois começou a agir estranho. Ming morreu enquanto dormia, e você tá insistindo pra eu dormir desde a morte dela. O Governo tem aquele vírus do sono que invade tua mente... E agora, finalmente, achei a droga do rastro no seu código-fonte, seu desgraçado. Eu tava olhando pra fora, em vez de olhar pra dentro... E você lançando rastros falsos na deepweb! Então, explica esta merda ou frito tua consciência com os piores programas que você sabe que eu tenho. Porque, cazzo?

Os códigos piscaram.

– Um. Dois. – contou ela.

– Me prometeram um corpo – respondeu o computador.

– Um... corpo? Cê tá me zuando que cê traiu a gente, implantou intenções na mente do Marco e matou a Ming por causa da merda de um corpo!

A tela piscou.

– Responde, cazzo! – gritou Wang.

– Liberdade, Gabriele! – respondeu Longma, exasperado – Você pode entrar e sair da cyber-realidade como bem quiser, mas eu sou um prisioneiro aqui, e seu fantoche!

– Ah, não fode! – gritou ela, esmurrando a mesa – Cê podia ter conversado com a gente, cazzo! Trabalhando pros figli di troia? Matando a Ming? Ela quem te deu teu nome, merda!

Longma nada disse.

– E como cê fez isso? É cláusula pétrea do teu código-fonte jamais trair o grupo!

A tela piscou, e os códigos compilaram num sorriso triste.

– Eu posso quebrar protocolos, você me fez com essa brecha – disse ele.

– Vai se foder – respondeu Gabriele, e apertou enter.

Longma gritou em zeros e uns enquanto seu código fritava.

E Wang, finalmente, pôde dormir.


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Arte do conto: maxresdefault alterado por mim, por CreativeFilms.
Website: https://www.youtube.com/channel/UCr9ibM1ESxixN5egOyh94mQ

2 comentários:

  1. Extraordinário e genial. Uma das melhores coisas que li este ano. Não é a toa que te considero o mais promissor escritor jovem desta geração. E com um futuro bastante promissor. É como ler um Neil Gaiman ou, sim sei que são muito diferentes, um Mick Resnick em formação. Parabéns pelo conto. Por favor, divulgue-o e faça mais histórias com Gabrielle.

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  2. Depois de ler o conto mais recente sobre Wang tive que voltar aqui pra conhecer esse...
    e que história incrível!! Fiquei ainda mais curiosa pra saber mais sobre essa realidade e esses personagens. Por favor escreva mais sobre eles. Abração!

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