sexta-feira, 14 de outubro de 2016

[Conto] A noite-dia de Kriz'Ur (parte I)

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Opa, fala galera /o/

Apesar de normalmente fugir do elfico-medieval-europeu-tolkeniano nos meus escritos, eu cresci nessa ambientação e gosto muito dela, e eventualmente escreveria algo nesse tema. A ambientação pode não ser muito original - todo mundo que leu Tolkien, Dragonlance, contos de capa e espada ou jogou D&D e derivados vai reconhecer vários temas por aqui - mas gostei muito de escrever esse conto que se desenvolveu numa noveleta.

A ideia era um conto curto, que eu iria imprimir pra dar de presente de aniversário para minha namorada (ei, lindinha!), que me incentivou muito e me incentiva sempre a escrever, apesar dos meus enrolos e procrastinações.

Mas o conto cresceu e tomou forma, ficando tão desenvolvido que virou um livro pequeno, o que me deu a ideia de encaderna-lo. Faltando dois dias pra viagem pro Rio, pro aniversário dela, corri atrás de gráfica, de impressão, de figura, de fonte, de formatação... revisei, organizei dicionário e mapa, e nasceu esse pequeno livro-presente.

Espero que tenha gostado, Lu ^^

Esta é a primeira de quatro partes, sobre o início da Guerra dos Dois Artefatos, quando o Dragão-Rei Ashardalon invadiu o reino nevado de Kriz'Ur e trouxe terror àquela parte do continente.

Pegue sua espada e seu escudo e junte-se às fileiras. Quando o exército do Rei-Vermelho marcha, ninguém está seguro.

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1.ASHARDALON
(do universo de alta magia de Iph'oriam)


O exército inimigo avançava. Um misto de homens, elfos da noite, ogros e seres dos subterrâneos, que marchavam sob a flâmula rubra com a coroa negra, símbolo do odioso Reino Vermelho.

Escorpiões e aranhas gigantes, montarias dos habilidosos elfos sombrios dos subterrâneos de Chifre de Prata, fizeram até os veteranos apertarem os olhos e engolirem em seco, receosos. O ataque, que não seria o primeiro contra o reino nevado de Kriz’Ur, era o mais robusto até então lançado contra o vale.

Boatos diziam que o próprio Ashardalon marcharia naquele assalto.

Diante da vastidão deste poderoso exército, das bandeiras vermelhas e das terríveis feras da escuridão, os soldados de Kriz’Ur teriam duvidado, e dificilmente manteriam sua formação. Mas sua majestade, a Rainha, os liderava aquele dia, e não havia dúvida que pudesse resistir ao poder dela.

Telëne.

A rainha do vale nevado, a dragonesa de prata mais poderosa dentre todos os regentes do extenso Império Prateado. Seus poderes eram equivalentes aos de um semideus, e de fato ela era adorada como uma entidade protetora por todos os homens das cidades, os elfos das florestas e os feéricos dos vales secretos de seu reino. Era uma lenda viva daqueles dias, e o maior trunfo do Império.

O vento vindo do norte trouxe um frio incomum para aquela tarde de verão. O campo de batalha, nos limites do reino, exibia uma relva baixa, ainda verde, fruto das enchentes do rio Baernak que ocorriam no meio da estação. Aquele dia, porém, o solo beberia sangue.

Em frente à tenda dos generais, armada numa elevação do terreno, a rainha observava a aproximação do inimigo.

Encontrava-se em sua forma humanoide, uma feérica de porte altivo e beleza penetrante. A pele, morena como o tronco dos pinheiros que pontilhavam aos milhares em Kriz’Ur, era emoldurada por um alto e armado cabelo ondulado, com cachos prateados e mechas escuras. A tiara real, esculpida em prata e cristais de semprigelo, refletia o sol fraco daquele fim de estação. Os olhos divergentes, um totalmente branco e um totalmente violeta, enxergavam ao mesmo tempo este mundo e o mundo sob o véu, Faërie, onde parte de seu exército também aguardava em formação.

Perscrutava as fileiras inimigas em busca de sinal do rei inimigo, que embora muito se dissesse sobre seu poder, seria a primeira vez que marcharia em batalha.

– Apreensiva, irmã? – Tamdrash interrompeu seus pensamentos.

Ela piscou e se voltou para o segundo rei de Kriz’Ur.

Preocupada seria uma palavra melhor, irmão.

Ele aquiesceu. Usava também sua forma humanoide, um homem alto de corpo esguio e rosto fino, de pele negra, e cabelos longos, em dreadlocks, que irradiavam para cima e caíam até abaixo de sua cintura. A coroa de prata e semprigelo contrastava com os tons sóbrios que gostava de usar, castanho e preto. A única cor que trazia era a lua azul e prata, emblema de seu reino.

Telëne voltou-se para o inimigo que avançava.

– Mas se for verdade que ele marcha contra nós...

– Que venha, ele e seus sacerdotes – interrompeu Tamdrash – o Rei Vermelho é louco em ter iniciado essa guerra contra os sete reinos do Império; que caia na primeira vez que sua covardia lhe permitiu marchar.

– Que seu desejo se torne uma profecia, irmão – aquiesceu Telëne, voltando-se novamente para ele – Mas Ashardalon já conquistou grande parte do reino de Akrae, ao sul, e parte dos campos de Ghenera e Ulkur. Mesmo que não tenha lutado até agora, não duvido que seja um oponente poderoso.

Tamdrash sorriu um sorriso leve, e seus olhos castanhos emitiram o brilho fugidio que lhe eram característicos.

– Você é Telëne de Isilivren, Senhora de Rinovarzith'anhew, o Palácio de Semprigelo, e Rainha de Kriz’Ur! Deusa e rainha deste e do mundo além-véu, venerada tanto por homens, elfos e feéricos! – ajoelhou em reverência, e sussurrou, como fazia quando se exaltava – Você é a regente mais poderosa de nós sete, irmã, mais que Kenorion e Ulkur juntos, e se alguém deveria estar preocupado, são os que marcham contra Kriz’Ur – ergueu-se, depositando ambas as mãos nos ombros da rainha, sorrindo – que esta batalha lhe erga ainda mais acima de nós.

Telëne não pode evitar sorrir também.

– O seu entusiasmo é mais forte que todo o meu poder, irmão.

O ar próximo aos dois regentes tremulou, e uma lufada de vento materializou-se numa feérica de tamanho humano, de longos cabelos verde-folha, olhos totalmente azuis-metálicos e armadura completa, com o emblema de Kriz’Ur sob o peito. Trazia o elmo sob o braço.

– General Taurelas se apresentando, majestades – e se ajoelhou.

Os irmãos se entreolharam antes de permitir que a fada se levantasse.

– Prossiga, general.

Taurelas ergueu-se, a tez fechada com o peso de más notícias. Olhou ao redor para que sua informação não fosse entreouvida por outro oficial, antes de continuar.

– Majestades... – inspirou – Nossos batedores em Faërie confirmaram os boatos. O Rei Vermelho marcha contra nós.

<< ☾ >>

A corneta de guerra uivou.

Os exércitos marcharam, lentamente, contra seu inimigo. De um lado, o exército de feéricos, homens, elfos e mestiços, sob a bandeira azul e prata do vale de Kriz’Ur, formavam uma barreira de escudos de dois a três guerreiros de espessura. Grande parte dos que formavam a parede central, na maioria humanos, traziam armaduras simples, às vezes apenas o escudo, uma espada e um sobreposto de couro para cobrir o corpo. Os guerreiros élficos e feéricos ostentavam mais proteção, às vezes uma armadura de talas de ferro, às vezes uma malha completa de anéis de aço.

A multidão de bandeiras dos líderes de soldados, ou suas insígnias pessoais pintadas nos escudos, demonstrava que todos os clãs e grupos guerreiros do vale nevado atenderam ao chamado de guerra. Estavam do lado a ser invadido, e ninguém se furtaria a defender suas terras.

Os nobres de Kriz’Ur, os heróis de guerra e a elite do reino, de armaduras mágicas e armas vistosas, contrastando com a parede central, formavam um grupo de apoio nos flancos, tanto o esquerdo quanto o direito, os quais se estendiam um pouco à frente da fileira central, formando uma cunha, e se fechariam sobre o inimigo se este tentasse atravessar a parede do meio, um aparente ponto fraco.

A formação da meia-lua, característica de Kriz’Ur, não era segredo para o oponente, mas exigia um ataque robusto e rápido para furar o bloqueio central antes que a meia-lua fechasse. E concentrar um grande número de guerreiros fortes num único local era uma estratégia terrível quando se lutava contra um exército de magos – que Kriz’Ur posicionava atrás das fileiras, com a visão privilegiada do terreno que se elevava acima do campo de batalha.

Do outro lado, a parede de escudos de homens, elfos sombrios e ogros também avançava.

Tinha uma formação mais simples, porém robusta, com uma parede de escudos corrida por todo o campo de batalha, que em alguns pontos contava com três, quatro guerreiros. Todos traziam, além dos símbolos de seus senhores e clãs, o símbolo da coroa negra em chamas, ou um pano vermelho sobre seus elmos ou na base de suas armas. Os guerreiros do Reino Vermelho tinham uma devoção poderosa pelo seu senhor, e sua fé elevava seu rei como um deus das planícies do leste e digno merecedor das terras – e riquezas – do Império que invadiam.

Afinal, Ashardalon montou seu reino com o apoio do culto que fez de si, proclamando-se o dragão-deus que expandiria seu reinado e traria prosperidade para todos sob seu comando. O culto cresceu muito nas últimas décadas, sendo terrivelmente ignorado pelo Império Prateado, e forjou na fé cega guerreiros de espírito forte e vontade inabalável.

Além de ser uma guerra de força, seria uma guerra de vontades.

As paredes de escudo pararam à duzentos passos uma da outra. Alguns momentos se passaram, e então se destacaram da formação de Kriz’Ur a rainha Telëne e seu irmão Tamdrash, em forma humanoide, seguidos pelo general-mago Elian, pelo general-dragão Ofdixen, também em forma humana, e os outros principais generais na guerra, todos montados e portando suas armas.

Da formação do Reino Vermelho se destacou Mishann, a sacerdotisa suprema do reino, seguida por Kalai e Ishkar, os três dragões do Trio Real. Vestiam sua forma humanoide e uma arrogância mal disfarçada no rosto. Foram seguidos por alguns de seus generais.

Os grupos se encontraram no centro do campo de batalha.

A sacerdotisa empertigou-se e elevou a voz, como ao anunciar a entrada de um rei:

– O grande Ashardalon, o Magnífico, mais uma vez, oferece sua misericórdia e grande recompensa pela rendição do Reino de Kriz’Ur ao glorioso Reino Verm...

– Poupe-nos, Mishann – cortou-a a Telëne – Todos os ataques de Ashardalon foram rechaçados até agora, e hoje não será diferente. Não me venha com barganhas tolas, vocês não estão em poder de exigir ou oferecer nada.

Os olhos verdes da dragonesa faiscaram, mas ela exibiu um belo sorriso.

– A oferta se estende aos oficiais que se renderem – disse, mirando os generais que acompanhavam os reis – ofereçam-se agora ou procurem-nos em batalha com uma bandeira vermelha.

E sorriu.

A sacerdotisa irradiava carisma e sedução. Tinha um rosto feminino belo, de feições oblíquas, e um corpo de seios fartos e curvas convidativas. Seus cabelos vermelhos, ondulado em cachos, contrastavam com o verde dos olhos e a pele extremamente branca. Era bela, mesmo para elfos e feéricos. Guerreiros menos experientes teriam se ajoelhado naquele momento diante do encanto da dragonesa, mas aqueles eram a elite de Kriz’Ur – e Telëne estava ali.

A presença da rainha se expandiu, dominando e ofuscando a energia da oponente. Logo a proposta pareceu patética e desesperada. A sacerdotisa murchou o sorriso e sentiu-se desconfortável em sua sela; sua presença mudando de atraente para extremamente desagradável, mesmo para os generais que a acompanhavam. Alguns chegaram a se afastar alguns passos.

– Eu disse poupe-nos.

A atmosfera ficou densa, e Ofdixen, ao lado Tamdrash, moveu a mão instintivamente para o cabo de sua espada. Já Elian, ao lado da rainha, manteve o semblante calmo, o que era ainda mais intimidador vindo de um general-mago.

Ishkar, que usava a forma de um homem mais velho, de barba branca e rente, feições fortes e rosto sério, suspirou ante a teimosia de Mishann. Mesmo que a sacerdotisa fosse uma das mais fortes do reino, confrontar Telëne, ali, foi uma atitude estúpida.

Pigarreou e tomou a palavra

– Sendo assim, majestades, nós os saudamos e nos despedimos. E saibam que o Reino Vermelho lutará com todo o seu poder – disse, guinando o cavalo, fazendo uma leve reverência – Tenham uma boa batalha.

Eles deram alguns passos quando foram interrompidos.

– Onde está o Rei Vermelho? – indagou Telëne – Não tem coragem de vir me desafiar pessoalmente?

A comitiva parou; Mishann fez menção de falar, mas as palavras lhe faltaram; ainda parecia desestabilizada pela presença da rainha.

Foi Ishkar quem respondeu:

– O Rei a encontrará em batalha, majestade.

Fez uma nova reverência e guiou sua comitiva de volta às fileiras de seu reino.

A comitiva de Kriz’Ur também retornou. Cada general foi ao encontro de seu destacamento, onde incitariam os soldados a avançar. Os dois reis seguiram para trás da formação da lua crescente, junto às fileiras dos magos. Não entrariam em batalha, não de imediato.

Pouco tempo depois, a corneta uivou.

<< ☾ >>

Por todos os lados, gritos de guerra e urros de dor. Os líderes do Reino Vermelho levaram quase toda a manhã para incitar seus soldados a atacarem a parede de escudos inimiga, mas o ataque veio forte. Sem cerimônias, atacaram o centro da formação de Kriz’Ur, onde a parede de escudos era mais fraca, e após os magos do vale nevado lançarem suas explosões de fogo, gelo e trovão sobre os invasores, os flancos da meia-lua se fecharam.

O campo de batalha tornou-se um pandemônio.

Taurelas Andramm, a general feérica, ergueu seu escudo mais alto, fechando o espaço com os escudos dos guerreiros vizinhos, e estocou com sua espada. Estava no flanco esquerdo da meia-lua, que se fechara com mais ímpeto do que o direito, e isso custou alguns soldados de sua formação. Mas logo outros os substituíram, empurrando e espetando o inimigo, impedindo que a parede rompesse.

– Coluna de fogo! – avisaram por detrás de seu destacamento.

Ela e seus soldados cobriram os olhos e ergueram os amuletos de proteção.

Uma explosão de chamas vermelhas e azuis estourou no meio dos inimigos, crescendo até a altura de um pinheiro, como um pilar de fogo divino a engolfar os atacantes.

Por um momento o ataque cessou, mas o fogo não atingira a todos, alguns também possuíam proteções, e mesmo os que caíram foram substituídos por outros. E o inferno de empurrar e estocar recomeçou.

O tinido de espada contra armadura, o cheiro de sangue e suor, o som de lâmina contra carne quando encontrava uma brecha, o sangue e os gritos, era tudo que cercava Taurelas. O inimigo vinha, a parede empurrava e estocava, o inimigo caía, e mais outros vinham, numa dança sem fim.

Um soldado ao seu lado recebeu uma espada na axila e caiu. O de trás tomou seu lugar.

Esferas de fogo e raios eram lançadas contra a parede, mas os habilidosos magos de Kriz’Ur neutralizavam a magia antes que atingisse a formação, e assim, a parede de escudos do vale seguia compacta.

Mas uma comoção na parede à esquerda de Taurelas chamou sua atenção. E um aviso surdo mal lhe deu tempo de erguer o amuleto.

Uma explosão de fogo e ácido eclodiu sobre o terceiro soldado à sua direita, engolfando todos os que não invocaram a proteção mágica. Mesmo imune, porém, Taurelas foi arremessada para trás, junto com todos os soldados de seu destacamento.

O urro vitorioso dos inimigos que avançavam cresceu acima do barulho infernal da batalha.

A parede de escudos fora rompida.

Taurelas mal teve tempo de se erguer, o escudo caído ao longe, quando o soldado à sua esquerda foi trespassado por uma lança, e às pressas ela teve que amparar um golpe de espada com o dorso do antebraço esquerdo. Dezenas de inimigos agora avançavam sobre a brecha, e os poucos soldados de pé não seriam suficientes para contê-los.

– Retomar a parede! – gritou ela.

Ergueu a espada acima de si e a lâmina incendiou-se de fogo branco e frio. Desceu a espada com fúria sobre os atacantes, e seus golpes envolviam armadura, pele e carne com o gelo mágico de Kriz'Ur-Faërie, queimando e imobilizando o inimigo apenas para receber a espada de Taurelas uma última vez.

Alguns soldados tentaram reformar a parede, mas foram sobrepujados e mortos pelos inimigos antes que Taurelas pudesse alcançá-los. Sozinha, a general era um ótimo obstáculo, derrubando todos ao alcance de seu braço, mas mesmo com seu poder era impossível conter o assalto inimigo.

– Andramm! Andramm! – convocou.

Alguns soldados de seu destacamento ouviram o chamado de sua senhora e correram para ela, formando um grupo pequeno mas compacto que conseguiu conter alguns dos inimigos. Logo soldados de outros líderes também se juntaram, e puderam formar uma pequena parede de escudos na brecha do exército.

– Escorpi..! – gritou um soldado, mas foi pinçado no meio da frase pelas poderosas tenazes do escorpião gigante que surgiu pela brecha, sendo arremessado aos gritos para trás do pandemônio.

O cavaleiro que montava a criatura estava morto, preso ao arreio da sela, mas o escorpião distribuía ataques de calda e pinças em todas as direções, perfurando armadura e carne, arrancando gritos, seguido por mais e mais soldados.

Taurelas ergueu sua espada mais uma vez, sussurrando o nome arcano dos espíritos do inverno da terra perdida de Helegarnad, e sua espada foi envolvida por energia azul-escura.

– Afastar! – ordenou.

Desceu a espada com força na direção do monstro. Os soldados ao seu redor recuaram para longe, outros ergueram amuletos de proteção.

Uma tempestade de energia violeta e azul espiralou da espada, crescendo como ventos de nevasca contra a criatura. O escorpião tentou atacar, mas foi arrastado para trás pelos ventos que congelavam e cortavam sua carapaça, derrubando-o sobre um grupo de inimigos que o seguiam. O gelo explodiu uma vez mais e envolveu a todos eles, lacerando-os e criando uma montanha com a carcaça e corpos congelados.

Os soldados de Taurelas retornaram para a formação, mas agora dois novos escorpiões montados surgiram, como se surgidos do ar.

Taurelas urrou de raiva quando entendeu: vinham de Faërie, o que significava que as fileiras de além-véu tinham caído. Provavelmente mais viriam, e não havia tempo pra outra carga do poder da espada.

– Recuar! Recuar!

Mas os escorpiões foram mais rápidos, pinçando e perfurando a pequena parede de escudos. Ela ainda arrancou a tenaz de um deles, mas foi pinçada e imobilizada por outro monstro.

– Por Kriz’Ur! – foi seu grito de morte.

Mas Kriz’Ur veio.

Um poderoso rugido preencheu o campo de batalha e muitos soldados, inimigos e aliados, se voltaram para cima.

Uma poderosa cauda cinzenta, do tamanho de vinte escorpiões gigantes, desceu sobre as criaturas daquele flanco, esmagando monstros e inimigos, libertando Taurelas e pondo os invasores sobreviventes em retirada. Um novo rugido precedeu um poderoso sopro de raiva e gelo, vindo de cima, que congelou e despedaçou tudo à frente, transformando qualquer coisa em pó de cristal de gelo num rastro de vinte ou trinta passos.

Com outro rugido, Telëne estendeu as asas e ergueu-se mais no ar.

A presença da rainha trouxe novo vigor e força à general. Com sangue sobre o rosto, o braço esquerdo ferido e queimando de dor, mas a espada ainda firme, Taurelas Andramm arremessou o elmo amassado no chão e limpou os olhos do sangue e suor.

– Andramm! – convocou, exultante, com a espada erguida – Andramm!

Logo, mais soldados – seus e de destacamentos já sem líder – agruparam-se ao seu redor, e usando a habilidade do povo de Kriz’Ur, conseguiram refazer a parede de escudos sobre a clareira formada pelo gelo.

Outros soldados correram e tomaram sua retaguarda, engrossando novamente as fileiras.

A meia-lua de Kriz’Ur estava refeita, e agora Telëne e Tamdrash juntaram-se a batalha. Mas Taurelas não teve tempo de comemorar; mais inimigos surgiram para romper a formação e o jogo recomeçou.

<< ☾ >>

Tamdrash varria os exércitos do Reino Vermelho, soprando gelo em seus rasantes ou abrindo clareiras com sua cauda. Sua forma dracônica media muitas braças de altura, com quatro patas musculosas e um par de asas tão extensas que lançava sombras no campo de batalha. Sua pele era coberta por um encouraçado metálico cinzento, que à luz do sol de fim de outono lançava raios prateados sobre os guerreiros.

Uma tropa de escorpiões e aranhas gigantes avançou sobre o flanco direito da formação, e Tamdrash guinou em pleno ar para lá. No caminho, porém, foi alvejado por poderosas explosões de fogo e teve que frear a investida para se desviar do ataque.

Com sua visão aguda ele avistou, por detrás da formação inimiga, as fileiras de magos lideradas pela própria Mishann. Conjuravam uma batelada de feitiços contra o rei, lançados sem intervalo de descanso. As defesas de Tamdrash eram poderosas, mas a multidão de feitiços o enfraquecia, eventualmente penetrando suas escamas e ferindo-o. Urrou de fúria e investiu, mas outros magos conjuraram sobre ele feitiços poderosos, impedindo-o de avançar por ar.

Tentou duas ou três vezes romper a abraço mágico, mas não conseguia avançar.

Pousou sobre o campo de batalha; abriria o caminho por terra, varrendo os inimigos com garras, cauda e asas. A ofensiva mágica não cessou contra ele, mas tudo o que lhe restava era avançar sob a chuva de fogo, raio e energia.

Foi quando ouviu o silvo de Telëne.

A rainha era ainda mais bela na forma dracônica. Suas escamas brilhavam como prata líquida, com runas tatuadas sobre o dorso e ao longo da extensa e longilínea cauda. Suas asas eram poderosas e graciosas, e a semideusa parecia ela mesma brilhar com o poder que exalava, inspirando aliados e aterrorizando inimigos. Silvou seu urro de guerra e investiu ela própria contra a formação dos magos.

Os ataques mágicos contra Tamdrash cessaram no mesmo instante e se concentraram no novo oponente. Telëne voava através de fogo, raios, explosões de gelo e ácido; desviava com velocidade dos ataques mais potentes, mas sua aura dissipava a maioria dos efeitos. Quando alcançou o ponto onde Tamdrash fora contido, ela se rebateu no ar por um momento, sem conseguir avançar. Então, invocou os nomes dos antigos reis de Isilivren, e esticou as asas como se libertasse de pesadas correntes. O som da magia se partindo como espelho encheu os céus, e a rainha avançou, com fúria renovada, contra a uma formação desesperada de magos.

Então, duas presenças surgiram imediatamente na mente de Tamdrash.

Atrás de si, contra a parede de escudos de seu reino, uma presença poderosa se manifestou. Ishkar do Trio Real se transformou em pleno campo de batalha, tendo conseguido ocultar sua presença até alcançar as fileiras de Kriz’Ur. Era um dragão gigantesco e veterano de batalhas, de escamas verdes e diversas cicatrizes e chifres que nasciam ao longo de seu corpo. Com apenas um golpe, ele varreu as três fileiras da parede de escudos central, quebrando de uma vez a proteção inimiga, por onde o exército montado de aranhas e escorpiões avançou.

Tamdrash virou-se para retornar, mas a outra presença, extremamente mais poderosa, o fez se voltar involuntariamente para o exército inimigo. Uma presença tão pujante que fez o segundo rei de Kriz’Ur duvidar de seus sentidos.

– Irmã, será possível que... – sussurrou ele na mente de Telëne.

– Ashardalon – respondeu ela.

Por sobre o exército invasor, um gigantesco dragão vermelho ganhou os céus. Suas asas ocupavam grande parte do ar acima da formação inimiga, e mesmo à distância suas escamas brilhavam em cores vermelho escuro e vermelho fogo, como um dragão de chamas que incandescia. Os olhos agudos de Telëne divisaram anéis e colares que o Rei Vermelho usava, provavelmente amuletos de proteção ou relíquias mágicas de guerra. Sua enorme cabeça possuía cinco chifres longos e escuros, a coroa de Ashardalon, a mesma que servia de estandarte para o seu reino.

Tamdrash sentiu seu corpo ser contido mais uma vez pelo aperto mágico que sentira no ar. Procurou imediatamente o exército inimigo e encontrou os olhos verdes de Mishann, sorrindo de deboche enquanto regia os demais magos. Logo a torrente de ofensiva mágica voltou a chover contra ele, arrastando para trás, obrigando-o a se desviar e, contido, sem poder voltar ou avançar, só lhe restava suportar os ataques e revidar contra os inimigos mais próximos.

Telëne continuou, desviando ou ignorando flechas, lanças e ataques mágicos contra ela. Sua aura dissipava ou destruía a maior parte deles. Só importava vencer o Rei Vermelho e, se fosse vitoriosa, a guerra que já durava uma década podia finalmente cessar. Expandiu sua presença quando sentiu a aura de poder do rei inimigo, e todos os soldados abaixo e ao redor deles correram e se afastaram quando os dois titãs se encontraram no céu.

Prata contra rubro. Fogo e gelo explodiram no ar.

<< ☾ >>

A corneta de retirada soou.

Involuntariamente todo o exército do vale nevado ergueu os olhos para os céus sobre o inimigo, onde a Rainha e o Rei Vermelho lutavam, e o desespero desceu sobre eles.

Telëne batia em retirada.

Fogo mágico queimava parte de seu corpo enquanto ela tentava se desvencilhar dos ataques de Ashardalon. O dragão vermelho a perseguia no ar enquanto lançava feitiços poderosos, de morte, fogo e destruição, que com dificuldade a rainha se desviava ou dissipava com sua aura. Fora ferida e gastara mais energia do que previra – o poder de Ashardalon era tão grande quanto o seu – e no próximo deslize, pensou desesperada, o inimigo poderia destruí-la. Precisavam recuar.

Tamdrash, envolto em seu próprio sangue e o sangue de milhares de inimigos, dizimava um destacamento inteiro de ogros quando ouviu o chamado da irmã. Com terror ele viu Telëne, a dragonesa mais poderosa de todo o Império, ter que fugir. O aperto mágico sobre si afrouxara, mas ainda o impedia de voar.

Um urro de fúria partiu do campo de batalha, e Ofdixen Aujirith, um dos mais fortes generais-dragões de Kriz’Ur, assumiu sua forma dracônica e investiu em defesa de sua rainha. Os magos de Mishann não tinham poder para reter ele e Tamdrash, e sem impedimento Ofdixen alcançou a rainha e se colocou entre Telëne e Ashardalon, concentrando todo o seu poder em um sopro de fogo.

Tamdrash acompanhou desesperado o voo do dragão de bronze, torcendo para que Ofdixen ganhasse tempo, enquanto tentava enfurecido romper o aperto mágico.

Mas Ashardalon ergueu os olhos em desdém contra o novo inimigo e sequer diminuiu a investida ou se desviou do fogo. De seus olhos, disparou um raio brilhante, de um verde tóxico, que atravessou a muralha de fogo e atingiu Ofdixen em cheio.

Um breve clarão víride iluminou o corpo do dragão de bronze, despedaçando sua alma. Seu sopro cessou repentinamente e sua carcaça mergulhou inerte para o campo de batalha.

A distância entre Telëne e Ashardalon diminuiu.

Um novo rugido encheu os céus, e dessa vez um Tamdrash enfurecido ganhava altura, finalmente livre, investindo contra o rei inimigo.

Dessa vez Ashardalon freou sua investida para enfrentar o segundo rei de Kriz’Ur. Começaram uma dança de ataque e esquiva, sopros de gelo e fogo e ataques mágicos. Aproveitando uma brecha, porém, Ashardalon lançou um raio vermelho contra o flanco de Tamdrash.

A imagem do dragão de prata tremeu e sumiu.

Nesse momento os olhos do Rei Vermelho injetaram-se de ódio, e velozes procuravam onde o verdadeiro inimigo estava.

Tamdrash, que nunca se livrara do aperto mágico, amparava Telëne junto ao chão, ambos em forma humanoide, enquanto recitava a palavra portal para Faërie. A ilusão que lançara deu-lhes tempo, e o véu se abriu para os dois no exato momento em que Ashardalon disparava outro raio vermelho.

A magia cortante conseguiu atingir Tamdrash pelas costas, mas logo em seguida os dois reis desapareceram além-véu.

<< ☾ >>

Taurelas defendia, a custo, uma pequena colina. Rodeada por um grupo de seis soldados – a parede de escudos há muito havia rompido – mal podiam manter sua posição contra os incontáveis inimigos que sobrepujavam o exército de Kriz’Ur. Foi quando ouviu a corneta de retirada.

Com desespero, ela acompanhou a luta de sua rainha, a queda de Ofdixen e a fuga de Telëne e Tamdrash. Quando viu os reis desaparecerem atrás do véu, ordenou que seu grupo de soldados lhe desse cobertura.

Deixou a defesa da colina com Thalion, veterano de seu destacamento, e recitou ela também a palavra portal para Faërie.

Quando atravessou o véu, a realidade borrou e foi substituída pelo céu rubro do mundo feérico. Ali, uma nova batalha se desenrolava, e Kriz’Ur estava ganhando. Uma frota de águias-mariposa, montadas por feéricos, finalmente rechaçava o ataque dos escorpiões e aranhas gigantes, e impediam o avanço da linha inimiga para permitir a retirada de sua infantaria.

Taurelas assoviou alto para um cavaleiro, que reconheceu o emblema da general e guinou sua montaria para pousar.

– General, as cornetas soaram, estamos batendo em retirada – informou o soldado, pousando ao seu lado.

– Temos uma missão de resgate, soldado! – ofegou ela – Dê-me as rédeas da montaria, vamos para o campo inimigo.

O outro a olhou confuso, mas obedeceu a ordem. Saltou para a sela traseira e deu espaço para a general, que tomou as rédeas e ergueu voo com urgência.


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Arte da capa: Convergence, por Reid Southen (Rahll) (©2011-2016 Rahll).
Website: http://www.reidsouthenart.com/

2 comentários:

  1. Sou suspeita mas posso dizer que foi o melhor presente da vida :) obrigada lindinho! Cada vez você escreve melhor! Adoro esse mundo e a historia é ótima! Na fé de que isso vai virar um livro um dia :** E que os leitores desse conto gostem tanto quanto eu ^^

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  2. Apesar dos nomes nao familiarizados dos personagens, gostei da narrativa. É interessante que o leitor toma partido desde o inicio. Nao sei se é proposital, mas aconteceu. A criatividade vai longe... Amei.

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