terça-feira, 12 de julho de 2016

[Conto] Lua escura sobre Güyrapepobý


Mais um conto das selvas do Sul de Aera, e pouco a pouco o mundo vai se desenvolvendo o/

Um conto sobre as relíquias que protegem os povoados dos ventos de inverno, durante a terrível temporada dos furacões. Um conto sobre traição e fidelidade ao clã.

Espero que gostem (:

Notas de pronúncia no final do conto :)

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Lua escura sobre Güyrapepobý
(do universo de Aera, o mundo dos Deuses Ventos)
(histórias de Ka'aretama, as selvas do Sul)

De dentro do círculo mágico, Ko'ema abraçou com força a relíquia da tribo, enquanto Nhe'engaruna, a alta-xamã de Güyrapepobý, continuava cercada pelos guerreiros do inimigo. 

Homens! Homens no vale sagrado! 

A heresia da invasão apertava o coração da jovem, e a impotência de sua mestra rasgava seu orgulho de aprendiz.

Os guerreiros não ousavam tocar na alta-xamã, mas traziam lanças rúnicas que podiam feri-la sem quebrar qualquer juramento, e as mantinham apontadas para seu torso. Nhe'engaruna, porém, nada fazia desde que os invasores chegaram; tivera apenas tempo de gritar para que a aprendiz buscasse a proteção do círculo de runas, riscado no chão do centro do santuário. Nenhum deles ousaria invadi-lo.

_ Perjuros! – cuspia a aprendiz, de dentro da proteção mágica – Malditos sejam! Que os ventos da morte soprem uma desgraça maior que a nossa sobre vocês! Que a sombra do Povo-fera habite seus sonhos, que suas mulheres morram nas dores do parto, que seus filhos assassinem seus pais! Perjuros, perjuros!

A terrível maldição da pequena xamã fez os homens hesitarem e alguns abaixaram levemente a lança, sem liberar Nhe'engaruna, porém. Esta se mantinha imóvel, de olhos fechados e braços baixos, na mesma posição desde que os homens invadiram o santuário.

Parecia alheia ao que ocorria ao seu redor, os seios à mostra como era o costume entre os povos do sul, inspirando e expirando profundamente. Vestia uma capa de algodão tingido de azul, com uma saia também de algodão, azul e branca, ornamentada com palha e penas azuis, além de padrões da mais alta casta do vale sagrado. Espalhada por toda a sua pele, tatuagens negras espiralavam e serpenteavam, trazendo padrões mágicos e runas de proteção. Sobre a cabeça de cabelos negros, cortado à moda dos pepoabá, um canitar de longas penas, azul-metálicas, que a coroavam como senhora do vale de Güyrapepobý.

Parecia ausente, mas os olhos treinados de Ko'ema enxergaram grande quantidade de pnama, a energia mágica, se concentrando ao redor da mestra.

Precisava ganhar tempo.

O líder inimigo - um forte guerreiro da tribo dos jagüapý - se aproximou, sorrindo, ignorando suas maldições.

– Não quebramos qualquer juramento, kunhantã. Foi a própria alta-xamã de Güyrajubá que nos deu permissão. Seus fantasmas não podem nos causar mal.

– Mentiroso! – gritou a aprendiz, a raiva tremendo a sua voz – Tykyra nunca trairia os clãs! Nunca dariam permissão para um homem invadir os locais sagrados!

Os homens sorriram, mas o sorriso de deboche do líder fez Ko'ema trincar os dentes de raiva, e um ímpeto de atacá-lo quase a fez deixar a proteção do círculo. Pelo canto do olho, ela percebeu a pnama de Nhe'engaruna oscilar levemente com a provocação, se recompondo em seguida. A mestra ainda não estava pronta.

– Do que estão rindo? – Ko'ema usou de todo o seu escárnio para cuspir as palavras, e esperava que o temor que tremia sua voz fosse entendido apenas como raiva – Arrancaremos cada um de seus dentes e com eles faremos um círculo tão hediondo e tão poderoso ao redor do vale que os próximos idiotas que ousarem pisar nos nossos limites terão a mente destruída em sonhos de loucura e morte!

Mas o líder ampliou o sorriso ainda mais, e se Ko'ema não fosse uma xamã treinada, se jogaria sobre ele naquele instante para cumprir sua ameaça.

– Cale a boca, kunhantã. Sua maldição não pode nos ferir – e sorriu vitorioso ao sentenciar – Fomos convidados. Tykyra escolheu o lado certo.

– Mentiroso! – explodiu a voz de Nhe'engaruna, finalmente convocando seu poder.

Ela queimou a pnama ao seu redor, fazendo suas tatuagens brilharem e um grande vento surgir no recinto. Os guerreiros abaixaram as lanças e se afastaram apressados.

O som de asas gigantes então ecoou pelo salão da grande oca, quando ela entrou em transe entoando o cântico mágico, e agora os inimigos largaram suas armas e foram forçados a se ajoelhar, sentindo a energia do santuário sobre eles, torcendo sua vontade, expulsando-os dali.

O líder inimigo, porém, ainda de pé, voltou-se e caminhou incólume até ela, ignorando o cântico e o som.

Sem cerimônias, deu-lhe um soco no rosto.

O golpe pegou a alta-xamã de surpresa, rompendo seu transe e o encantamento, fazendo-a cair. E então ele a chutou com força; chutou até que ela se calasse e o poder de suas tatuagens minguasse e o som e vento desaparecessem.

Ko'ema ficou sem palavras com tamanha ofensa. Ele não poderia tocar numa alta xamã, menos ainda feri-la!

Mas seus olhos treinados captaram a pnama ao redor do peito do guerreiro.

Ele agachou ao lado dela, quase desfalecida, sorrindo.

– Tykyra me daria qualquer coisa para me ter em sua rede – disse, mostrando a grande tatuagem de proteção e permissão que trazia no peito desnudo, a pele ainda vermelha de poucos dias. Cuspiu no rosto dela e se levantou – Levem-na daqui.

Os guerreiros, ainda receosos com a atitude do chefe, por fim se aproximaram devagar e a fizeram se levantar – mesmo assim sem tocá-la –, escoltando-a para a saída.

Ferida e impotente, enquanto era guiada para fora, Nhe'engaruna voltou os olhos para a jovem Ko'ema, aqueles olhos negros que a aprendiz sempre admirou, agora vermelhos e turvos d’água. Mas não era só tristeza que havia ali; havia também ira, ira de xamã humilhada, ira de clã traído.

Ela manteve o olhar para a aprendiz, e a jovem entendeu.

Ko'ema não havia passado tantos anos em treinamento, nem lera tanto, ou meditara dias inteiros, sem que aprendesse alguma coisa. Os duros ensinamentos da Casa das Jovens a iniciara em muitos mistérios do xamanismo de sua tribo, e ela era ainda muito nova quando aprendera a linguagem dos olhos.

Nhe'engaruna lhe indicara o que fazer, e foi levada dali.

Restaram na sala o líder e mais cinco guerreiros. O chefe se voltou para ela.

– Não pode ficar aí dentro para sempre, kunhataĩ-a’uba. Logo sentirá fome, e sede, e então o que vai fazer? Saia e nos dê a relíquia.


– E então serei estuprada e torturada como fizeram com todas as outras mulheres da taba! Eu não sou idiota!

– Se não sair agora, juro pelos ventos da guerra que vou te torturar e te farei servir a rede de todo o meu batalhão, e sua morte durará sete vezes sete dias inteiros. Saia do círculo agora.

Ko'ema piscou. Ninguém ousaria invadir o círculo de tinta e sangue, feito pela mão de uma alta-xamã consagrada à Güyrá e à Brisa do Verão, senhora de um dos sete vales sagrados. Mas o inimigo tinha uma tatuagem poderosa, feita por outra alta-xamã, e também tinha razão; ela não poderia ficar ali para sempre.

Mesmo que preferisse a morte dentro do círculo, os guerreiros poderiam trazer uma das sacerdotisas menores para ultrapassar a proteção, e então, a relíquia cairia na mão dos invasores.

Pensou no que os olhos de Nhe'engaruna lhe disseram, e teve medo. Olhou para a tacapema às costas do homem, mas se lembrou dos gritos de ódio das mulheres violadas, e o medo deu lugar à vingança.

Que escolha tinha?

Ergueu a relíquia e a desenfaixou devagar. As tiras de algodão branco tocaram o chão sem fazer barulho, revelando um longo maracá, do tamanho do braço de um homem, esculpido em madeira de ipê e meticulosamente talhado em toda a sua superfície.

Pintado de azul, branco e negro, com padrões geométricos que iam desde o cabo de palha trançada até a cabaça do chocalho, o maracá era tão imponente quanto era poderoso. Uma linha de runas de proteção, desenhadas com a tinta negra de jenipapo, corria em espiral e se desenrolava desde a base da cabaça, onde o cabo encontrava a esfera, até o outro lado, de onde pendia uma corda branca de algodão trançado, que terminava numa longa pena azul, símbolo do vale sagrado de Güyrapepobý.

A relíquia protegia o vale durante a terrível estação dos furacões, que acontecia todo inverno, quando mesmo as mais antigas árvores da selva são arrancadas, quando os dias se tornam escuros e o som parece fazer toda a serra tremer. Fora construída pela mestra da mestra de Nhe'engaruna, uma xamã-guardiã de poder admirável, que em conjunção com a relíquia dos outros seis vales sagrados da tribo dos pepoabá, protegia as cidades e as tabas de grande parte daquele lado da serra.

Caso a relíquia fosse roubada, a proteção seria rompida, e grande parte do território pepoabá seria destruído no próximo inverno. E então, a nação jagüapý atacaria sem dificuldade e tomaria suas terras. 

A jovem segurou com força o maracá, repentinamente consciente de que portava em suas mãos a segurança de todos os seus parentes e amigos. A vida de seu clã e de sua tribo.

Não falharia com eles.

Inspirou devagar para relaxar e invocar a energia mágica. Ajoelhou-se e levantou a relíquia sobre a cabeça, em posição de oferta.

O líder guerreiro sorriu vitorioso, mas a oferta não era para ele.

Ko'ema então entoou o cântico mais secreto das xamãs de Güyrapepobý, erguendo a relíquia o mais alto que pode, se levantando devagar.

Entrou em transe mágico, e seu canto tornou-se forte, preenchendo e ecoando pelo salão de madeira. Quando o líder pensou em insultá-la para que parasse, sem aviso, ela vibrou uma vez o chocalho e em seguida torceu as mãos com força, quebrando o maracá em dois.

Não era uma noite de tempestade, mas um grande trovão soou lá fora.

– Sua desgraçada, o que você fez?! – gritou o líder jagüapý.

Neste momento, a lua cheia tornou-se completamente escura, e uma brisa incomum tremeu as árvores mais altas do vale, trazendo o som de milhares de batidas de asas.

O som vinha do alto, vinha da serra, tornando-se cada vez mais próximo, crescendo junto ao cântico da aprendiz, cada vez mais alto.

Quando a brisa invadiu o salão, agitando os cabelos e mantos dos guerreiros, fazendo-os largar as armas e proteger os olhos, o som do cântico foi substituído pelo barulho ensurdecedor de milhares de pássaros em revoada, ecoando nas paredes de madeira, reverberando nas cerâmicas penduradas, vibrando o chão de terra batida.

Quando o barulho ficou insuportável, obrigando-os a proteger os ouvidos, Ko'ema levantou-se e os encarou.

Repentinamente, fez-se silêncio.

Ela largou uma das partes do maracá, inútil agora, que caiu com um barulho leve no chão.

Os homens a olharam com medo, mas seu líder rosnava maldições. Ko'ema, então, deixou a proteção do círculo e deu alguns passos na direção deles.

Kangaĩ, o segundo em comando, não esperou a ordem do líder e investiu. Não pudera tocar na alta-xamã, por respeito ou medo, mas desde que invadiram o salão desejara o corpo da aprendiz para si. Correu para ela, sorrindo, tacapema presa às costas, certo de que a dominaria em três batidas de coração.

Sua cabeça ainda sorria quando deixou seu pescoço.

O corpo musculoso tombou para a frente, esguichando sangue para o alto, fazendo a chuva vermelha descrever um arco no ar e sobre Ko'ema enquanto caía. Tombou aos pés da aprendiz, jorrando cada vez mais sangue e empoçando de vermelho o chão do salão.

A cabeça caiu a alguns passos de distância, ainda com o sorriso no rosto.

Ela não pareceu se importar. As mãos e o manto estavam banhados de rubro, e com o rosto também sujo de sangue, foi a vez dela sorrir para o líder.

E seu sorriso tinha garras.

– Venha Marakajá, tomar o que é teu.

Recompondo-se da morte de Kangaĩ, o líder puxou sua tacapema e avançou contra ela, sem nem por um momento passar pela sua cabeça como foi que ela decapitara seu guerreiro mais forte com as mãos nuas. Ou sobre como a jovem sabia o seu nome.

Ele também não teve tempo de gritar.

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Muitos daquele lado do rio se lembram de como a lua se tornou escura naquela noite de verão. Os povos das tabas contaram histórias para amedrontar suas crianças, e os xamãs das cidades contaram profecias para amedrontar os adultos, mas as guardiãs de Güyrapepobý sabem a verdade.

Elas ainda contariam para cada nova iniciada sobre a invasão dos homens a um dos sete vales sagrados daquela curva do rio, sobre a traição de Tykyra, sobre os estupros e mortes, e sobre como os invasores – os que sobreviveram – fugiram aterrorizados naquela noite.

Não foram encontrados corpos no grande santuário central, porém, apenas o sangue dos homens.

E penas azuis.

As penas se espalhavam por todo o chão do santuário, ensopadas de sangue, coladas nas paredes e nas colunas de madeira. Não encontraram também o corpo da jovem Ko'ema, que nunca mais foi vista naquela curva do rio.

No meio do lago de sangue e plumas, porém, enfaixada em tiras brancas e novamente inteira, jazia a antiga relíquia, consagrada à terrível Güyrá mãe das aves, com asas tão grandes que cobriram completamente a lua quando ela desceu ao vale naquela noite.


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Imagem retirada e levemente alterada da galeria de Gothrix



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TRADUÇÃO
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a'uba: coisa ruim, coisa má.
Güyrá: pássaro
Güyrajubá: Pássaro Amarelo, de güyra (pássaro) e jubá (amarelo)
Güyrapepobý: Pássaro da Pena Azul, de güyra (pássaro), pepó (pena) e oby (azul, verde)
jagüapý: Pata de Onça, de jagüara (onça) e (pata)
Kangaĩ: Cabeça Pequena, de kanga (cabeça) e ĩ (pequeno, diminutivo)
Ko'ema: Raiar do dia
kunhantã: Menina, moça
kunhataĩ: Mesmo que kunhantã
Nhe'engaruna: Cântico escuro, de nhe'enga (fala, canto) e una (escuro, preto)
pepoabá: Homens das Penas, de pepó (pena) e abá (homens, povo)
tacapema: Espada de pau-ferro, tacape
Tykyra: Gota d'água

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PRONÚNCIA
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a'uba lê-se aúba 
Güyrajubá lê-se güy-ra-ju-bá
Güyrapepobý lê-se Güy-ra-pe-pó-bý (mas mantendo a tônica na última sílaba)
jagüapý lê-se ja-gua-pý
Ko'ema lê-se Koêma
Nhe'engaruna lê-se Nheêngaruna
pepoabá lê-se pepóabá (também mantendo a tônica na última sílaba).
tacapema lê-se tacapêma
Tykyra lê-se Tykýra

São oxítonas: Güyrá, Güyrapepobý, Güyrajubá, jagüapý, Kangaĩ, kunhantã e kunhataĩ.

1 - Consoante (') : o apóstrofo representa a consoante oclusiva glotal, que não existe em português. Basta fazer uma pequena interrupção da corrente de ar, seguida de um súbito relaxamento da glote.

2 - Vogal O: em tupi antigo, a letra O era provavelmente como em avó, farol, pó.

3 - Vogal Y: representaremos com Y um fonema que não existe no português. É uma vogal entre U e I, com a língua na posição para U e os lábios estendidos para I (sugestão: diga U e vá abrindo os lábios até chegar à posição em que você pronuncia I).

4 - Semivogal Ü: como a semivogal U do português em água, mau, nau, audácia, igual. 

5 - Sílaba tônica:
  • No tupi antigo, como em português, as palavras não acentuadas são geralmente paroxítonas.
  • Todas as palavras terminadas em consoante, em semivogal Ï E Ü, em vogal I, U e Y ou qualquer vogal nasal (Ã, Ẽ, Ĩ Õ Ũ e Ỹ) são oxítonas.
  • A vogal que segue uma consoante oclusiva glotal (') é sempre tônica

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BIBLIOGRAFIA
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NAVARRO, Eduardo de Almeida, "Dicionário de Tupi Antigo - A língua indígena clássica do Brasil", 1. Ed., São Paulo: Editora Global, 2013

NAVARRO, Eduardo de Almeida, "Método moderno de Tupi Antigo - A língua do Brasil dos primeiros séculos", 3. Ed., São Paulo: Editora Global, 2006



2 comentários:

  1. Gostei desse! Deu vontade de ler mais... É bom encontrar elementos tão próximos e ao mesmo tempo tão desconhecidos. Parabéns!

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    1. Vlw, Paulo!

      Se gostei desse, dá uma olhada no conto 'Ãmuru, é no mesmo universo

      Abraço o/

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