sexta-feira, 6 de março de 2015

[Conto] A última batalha de Yussuf


Primeiro conto do ano, ambientado nas dunas do Leste de Aera.
Espero que gostem o/
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A última batalha de Yussuf
(do universo de Aera, o mundo dos deuses-ventos)
(histórias de Āsh-Sharq, os desertos do Leste)
 

Desde o momento em que fui recuperada de sob as areias, após um longo período de exílio do mundo, eu soube como terminaria. Yussuf me encontrou prostrada na trilha do deserto, após uma grande tempestade tê-los feito interromper a viagem, quando os ventos da sorte removeram as toneladas de areia que me aprisionavam. Ele então era jovem, não tão belo como viria a ser, mas como sempre destemido; reconheceu meu valor e me escondeu do olhar cobiçoso do restante da caravana.

Eu, Fathara bint Hussayn, sou uma espada amaldiçoada. Fui forjada há muitos anos – o exílio sob as areias me fez perder a conta de quantos – pelo hábil alquimista-ferreiro Hussayn ibn Jaan, para ser uma espada mística poderosa, capaz de elevar o nome de meu portador acima dos demais guerreiros. E de fato, por muito tempo assim eu fiz. Eu era a espada do terrível Salah al Din, quando conquistou as tribos beduínas do leste. Fui a arma mortal de Abdhoula al Tahem, o guerreiro nômade que assolou as fronteiras da grandiosa Al-Iskandariyya. E levaria outros à glória, se eu não tivesse traído Jafar bas Jafar.

Foi ele a causa do meu tormento... Ou antes a culpa é minha e somente minha?

O fato é que Jafar, o espadachim-alquimista mais famoso daquela era, me amava. Vários dos meus portadores me amaram acima do que qualquer pessoa, e amaram a glória que eu lhes trouxera. Com Jafar não foi diferente, mas eu tinha meus próprios planos. Desejava eu mesma mais poder do que o que ele podia me proporcionar; desejava um portador mais nobre e mais poderoso. Assim, muito planejei, até que o convenci a atacar os poderosos djinni do deserto. Sua fama lhe trouxe homens fiéis, que o acompanharam na empreitada, e por mais impossível que possa parecer, eles poderiam ter ganhado tão arriscada guerra. Na última batalha contra o rei djinn, porém, enganei Jafar: o fiz errar seu golpe, abrindo sua guarda e fazendo-o sofrer um ferimento mortal. Jafar percebeu minha traição, e entendeu meu propósito quando o próprio rei tomou-me do chão e me clamou como sua, erguendo-me para o golpe final.

– Em minhas veias corre mais do que apenas meu sangue; corre o elixir que fiz com minha alquimia – sussurrou ele, com olhos embaçados de lágrimas – Se ele não foi capaz de me fazer ver através do seu falso amor, Fathara, que seja ao menos suficiente para amaldiçoá-la. Tu amarás, como eu lhe amei, todo aquele que a empunhar, mas serás tu a causa da morte de todo aquele que amares. Como foste a causa da minha.

E entregou sua vida para selar suas palavras. Bebi seu sangue num golpe rápido, mas pela primeira vez, em décadas de matança, senti o gosto amargo da morte.

A alquimia de Jafar era poderosa, mas mais poderosa é a magia selada com sangue.

Assim, sua maldição foi terrível, e desenvolveu-se como nem o próprio Jafar poderia ter suposto. Pois naquele momento, após a morte de Jafar, eu ante-vi a queda do rei djinn: o vi em duelo mortal com um de seus filhos, cobiçoso por me possuir, até ser trespassado pela lâmina de seu primogênito. Guardei a visão para mim, porque não acreditei nela, mas eu viria a amar Gaol – era este o nome do djinn-rei – poucos meses depois, apenas algumas semanas antes que minha visão se concretizasse. Chorei amargamente a morte de Gaol, mas tão logo seu filho usurpou seu trono, fui roubada pelo chefe da guarda e fugimos para o deserto. Também o amei, e ante-vi sua morte nas garras do Dragão-osso das dunas do sul, lugar por onde viajamos, mesmo eu tendo desaconselhado-o inúmeras vezes. Lá, ele deixou este mundo. Descobri, assim, que adquiri a maldita habilidade de ante-ver como morreriam meus portadores, caso ficassem ao meu lado. Sem nada que eu pudesse fazer.

Sofri a perda de centenas de amores, e mais terrível era minha dor por saber que fui eu a causadora de suas mortes. Minha magia ainda funciona, de modo que ainda elevo meus senhores acima de todos os guerreiros, mas a glória que lhes concedo se tornou apenas proporcional à ruína que lhes inflijo.

Tomei ojeriza à guerra. Tantos perdi, que não posso mais compactuar com um caminho que tanto sofrimento traz. Achei que teria enfim paz, quando fui soterrada pela abençoada tempestade de areia, mas, ai de mim! Os ventos da fortuna me odeiam, e exigem que meu sofrimento perdure. Pois, mais uma vez, quando Yussuf me encontrou, eu soube como seus dias terminariam, caso ficasse comigo.

Perdi a conta das vezes em que o aconselhei a não seguir o caminho da guerra. A me abandonar no fundo do mar ou no meio do deserto. Ele a tudo recusou, destemido como só Yussuf sabia ser. Iniciou sua carreira de soldado no exército do sultão, destacando-se como um poderoso general em poucos anos. Não podia adverti-lo sobre minha maldição, mas não me faltaram argumentos para tentar impedi-lo de continuar. Por anos, ele foi surdo a todas as minhas súplicas.

Agora, nosso exército espera a ordem de Yussuf, e eu choraria se pudesse. Ele pressente minha inquietação, mas me ignora, pois seu coração está confiante. Afinal, cavalgamos à frente de uma fileira de 10 mil valorosos guerreiros, e sem dificuldade podemos derrotar o maior inimigo do sultão. Yussuf será condecorado general-mor de todo exército após nossa vitória.

O sol se põe nas dunas do oeste, e Yussuf soa a trombeta. Avançamos contra o exército do sultão inimigo e oro em silêncio pela misericórdia dos ventos do destino. Mas sou uma espada, e mesmo desesperada, entrego minha mente à dança da guerra, à última dança que compartilharia com Yussuf. Pois foi aqui, nas dunas entre o Califado e Al-Iskandariyya, banhado pelos últimos raios do poente, que ante-vi sua morte.

Um golpe da cimitarra de um soldado inimigo esbarra no meu guarda-punho, arremessando-me para longe e desarmando Yussuf nos primeiros lances da guerra. Descrevi um arco no ar, e ainda em queda vejo o que sabia que viria depois: o soldado, que não possuía título algum, corta a gargante Yussuf ibn Kabbar, dando-lhe uma morte sem glória pela mão de um desconhecido. Se eu pudesse chorar, minhas lágrimas teriam acompanhado meu trajeto até a depressão na areia onde caí, sendo rapidamente coberta pelo corpo de um outro soldado morto, de onde, se os ventos tiveram algum dia piedade, nunca mais serei reerguida.


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Foto retirada de:
http://strangesounds.org/2014/03/strange-booming-sound-from-nature-the-singing-sand-dune-phenomenon-video.html

5 comentários:

  1. Eu adorei esse conto! Achei que o ponto de vista da arma fantástico. Jamais eu pensaria dessa perspectiva.
    Gostei do desenvolver da história também. Não só interessante como envolvente.

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  2. Eu adorei esse conto! Achei que o ponto de vista da arma fantástico. Jamais eu pensaria dessa perspectiva.
    Gostei do desenvolver da história também. Não só interessante como envolvente.

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    1. Brigado (:

      A ideia do ponto vista da arma foida Rita, de quem partiu a ideia principal.

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  3. Um muito bom amargo conto, gostei =D

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