segunda-feira, 11 de março de 2013

[Conto] As Canções de Mimeme


Esta pequena história nasceu do belíssimo conto "Cena no Jardim de Dom Hector de Brandabadere", da escritora e amiga Rita Maria Félix. Sugiro que o leiam (é curtinho) antes de seguir em frente. E boa leitura!

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As canções de Mimeme

(do universo do jardim de Dom Hector de Brandabadere)

Mimeme entoou a última nota com tristeza, amparada pela voz grave de Mogono, e assim terminaram a derradeira canção do dia. O sol se punha atrás dos muros do vasto jardim, mas a gaiola em que ela se encontrava era alta o suficiente para que pudesse acompanhar o espetáculo, agora em terno silêncio. Quando as borboletas de vidro passaram mais uma vez ao lado de seu cativeiro, rangendo enquanto batiam suas frágeis asas, a noite chegou.

Mogono agora se empanturrava com um punhado de alpiste com geleia e bebericava suco de acerola vermelha, que o servo do jardim havia reposto ainda há pouco. A companheira não demonstrava fome, e o silêncio da gaiola ao lado chamou a atenção do jovem ser.

— Mimeme, não vai comer? — entoou o pequeno homem alado, batendo as asas e agitando as penas vermelhas e o verde metálico de sua espécie.

Empoleirada em seu balanço de prata, a pequenina mulher-ave de penas multicoloridas olhou para ele com angústia. As borboletas de vidro já haviam caído e se tornado espelho mais uma vez, do outro lado do jardim, próximo ao arbusto-fantasma que surgia todas as noites para assombrar as ervas daninhas. Ela suspirou.

— Sempre que o último sol se põe e chega a noite, lembro-me de meu bosque natal. O vento vergando os galhos, as borboletas-flores dançando no ar. Eu me recolhia para a minha árvore com o perfume da noite, e contava os vagalumes até que caísse no sono.

Mogono engoliu um punhado de sementes e fez menção de dizer algo, mas ficou calado. Mimeme havia sido trazida ao jardim havia muito pouco tempo, talvez dois ou três verões; ainda não deixara a lembrança de casa. Ele, capturado quando ainda era um filhote, crescera e vivera quase toda a vida ali, em sua gaiola de ouro e prata.

— De que cor estava o pôr do sol hoje? — perguntou ele, para afastar a tristeza da amiga.

Ela sorriu, triste, encarando os olhos tortos de Mogono. Sob o pretexto de que sua espécie cantaria melhor assim, o Dr. Von Beltran, o falecido corvo médico do jardim, furou os olhos do homem-ave quando este ainda era pequeno. Após sua morte, fora substituído pelo não menos competente Dr. Karl, seu admirador e pupilo, um pato humanóide que herdara o sotaque carregado de seu mestre, mas que, para a sorte de Mimeme, discordava da cegueira como estimulante musical.

— Hoje o último sol se pôs em tons de violeta e azul — respondeu ela para o amigo cego — E as nuvens sapientes se desenharam em frases de saudade na superfície do lago.

— É, dizem que elas aprenderam a escrever com o próprio Mestre do jardim — sorriu ele.

— E as frases diziam sobre a tristeza do exílio, das maravilhas de retornar ao lar e das lembranças de dias que jamais retornam. Como as canções que gosto de cantar.

— Bem, você não devia dar ouvido a nuvens — resmungou ele — Também não gosto desse cativeiro, menina, mas os céus não foram feitos para nós. Coma suas sementes, antes que a geleia azede.

Ela sorriu, vencida, e pôs-se a comer.

Mas as nuvens, que raras vezes dedicavam sua escrita a emoções tão tenras, pareciam ter antevisto os eventos que acometeriam o jardim.

A lua nascera, derramando seus raios sobre o grande lago. Não tardou muito e as cigarras, profundamente teocráticas, iniciaram um cântico sobre a vinda de seu messias, e sobre como Ele iria elevar a sua espécie acima dos demais insetos. Dessa vez, porém, a solista se empolgou demais e levantou voo em pleno refrão, e sua dedicação era tanta que não notou quando a coruja da árvore vizinha, predadora mortal do coral de insetos, mergulhou com violência sobre ela. Salvou-se por uma benção porque a coruja, justamente naquele dia, deixara os óculos para que o homem-rato, servo do jardim, reparasse a armação. Assim, a coruja, que se gabava de nunca errar um alvo, errou por precisamente dois palmos, e a surpresa lhe foi tanta que foi incapaz de frear o rasante. Foi aterrissar de forma estrondosa sobre a gaiola esquerda, de liga de ouro e prata, onde Mimeme jantava. A fina corrente que sustentava a gaiola rompeu e ela, espalhando sementes e suco por todos os lados, foi arremessada com força dois ou três metros à frente. A coruja, cônscia do estrago, voou correndo de volta para o abrigo das árvores, e se alguém lhe perguntasse ela juraria pelas penas de seu irmão que, embora sempre quisesse devorá-los, nunca havia se aproximado dos pássaros-homens.

Demorou um pouco para Mimeme sair do estado de choque. Estava suja de geleia, suco e sementes, e havia perdido algumas penas de seus cabelos, mas não se machucara. Levantou-se, ainda tonta, ouvindo o piado preocupado de Mogono, que escutara o estrondo, mas nada entendera. Foi quando viu as rochas-meteoro, morada dos lagartos robóticos, e próximos a elas um arbusto de flores. O plano se formou em sua mente mais rápido do que as nuvens sapientes desenharam suas frases naquele dia. Resoluta, sem nem ao menos responder ao angustiado amigo, usou sua pequena força para rolar a gaiola até aquelas flores. Nem perto chegou e o cheiro da gaiola excitou as pétalas dentadas, cujo alimento preferido, Mimeme o sabia, era o metal. Deu um último empurrão e se afastou da borda, para que não fosse devorada por engano. As flores selvagens, extasiadas por poderem provar ligas tão valiosas, arrebentaram com ferocidade as barras da gaiola. Nem bem o primeiro rombo surgiu a pequena mulher alada se precipitou aos céus, livre pela primeira vez em dois anos.

— Mogono! — gritou ela, voando em direção ao amigo, gargalhando e mandando beijos às flores dentadas — Mogono!

— O que houve, o que houve?

— Estou livre! Minha gaiola caiu e as flores selvagens a destruíram! Estou livre!

— Livre...?

— Sim! — berrou ela, enfiando na fechadura um pedaço da barra de metal que roubara dos destroços de sua gaiola. Com um clique, a porta da prisão de Mogono também se abriu. Ela entrou veloz e puxou um estupefato homem-ave pelo braço. Para fora. Para a liberdade.

_ Vamos, vamos! – gritou, e seu grito era um piado de alegria que ecoou pelo jardim.

— Shh! Quieta, menina! — sibilou ele, enquanto batia as asas confuso, sem se soltar da mão da amiga — o servo do jardim!

Então, como que anunciado por Mogono, o homem-rato, cuja toca não era muito distante dali, surgiu da porta de casa, de pantufas e travesseiro nas patas, bocejando e se perguntando por que raios os pássaros-homens estariam fazendo tanto estardalhaço àquela hora da noite. Ao notar a falta da gaiola da esquerda e os dois seres libertos, largou o travesseiro e arregalou os olhos, de modo a invejar a coruja mais orgulhosa, e correu para sua caixa de ferramentas, em busca do cesto de borboletas.

— Mogono, corre! — Mimeme piou, puxando-o.

Mas as asas do amigo, que não sabia a que direção ir, atrapalhavam-na. Voaram apenas poucos metros antes do servo ressurgir, correndo como correm os ratos, com o cesto em mãos, golpeando o ar. O segundo golpe passou tão perto que a desequilibrou, fazendo-os se soltarem.

— Mogono, corre! Corre!

Bateram asas e se dividiram, mas ele, cego, ao invés de correr para os muros do jardim, foi na direção contrária. Os gritos de Mimeme só o confundiam mais.

— Corre você, menina! Vai! Mogono se vira!

Mas o susto e a adrenalina não o permitiam pensar direito. Voava em círculos, baixo e perigosamente ao alcance do servo. Mimeme voltou, desesperada, gritando direções.

— Já disse, corre! — respondeu ele mais uma vez, ganhando dessa vez altura, mas indo em direção ao bosque do jardim – Fuja você, que eu me viro! Em três tempos estarei do lado de...

O piado foi interrompido pelo rasante de uma coruja, que mesmo sem os óculos, dessa vez acertara a presa.

— MOGONO!

Sob as sombras das árvores, protegida do olhar julgador do servo, que nada entendera, a ave saciou sua fome noturna. Chorando e trincando o bico de desespero, Mimeme voou o mais rápido e o mais longe que pôde dali.


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Nem bem terminou a última nota, o sol se pôs atrás das infinitas copas. Sua árvore, entretanto, era alta o suficiente para que pudesse acompanhar o espetáculo. O pôr do sol tingira o céu, neste dia, na cor vermelha e verde metálico, cores que lhe trouxeram lágrimas.

Agora, sempre que o último sol se punha e chegava a noite, ela se lembrava do jardim. Do vento balançando as folhas do bosque, do voo perpétuo das borboletas de vidro atravessando o ar. De quando se recolhia de suas canções de saudade, acompanhada da brisa da noite, para então conversar com o companheiro e amigo, sua mais estimada lembrança, e os dois se entendiam e preenchiam os dias, e ouviam os salmos das cigarras, até que caíssem no sono.

As canções que canta ainda são de tristeza. Mas falam, agora, da dor da separação, das maravilhas da amizade e das lembranças de dias que não retornam jamais.

Quando as borboletas-flores se recolheram, a noite chegou.

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Baseado no belíssimo conto "Cena no Jardim de Dom Hector de Brandabadere", de Rita Maria Félix.

Imagem retirada da galeria de Strixx
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3 comentários:

  1. Adorei e fico honrada que meu conto tenho servido de inspiração para você.
    Parabéns!

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  2. Amei o conto. Vc realmente sabe mexer com emoções. Ficou lindo. Triste mas lindo.

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